Quando se levanta, o Caboclo Guará pega o Pau de Chuva e pede que eu ouça o barulho que faz. Pergunta-me o que lembra, e eu digo que parece um guizo de cobra.
Depois de riscado o ponto, pergunto ao Caboclo Guará, se pode me contar alguma coisa sobre a vida dele, então ele me pede que vá chamar a sua antiga cambone · Uca · para que ela me conte o que já sabe. Uca me relata uma parte da história da Entidade, que já havia sido contada por ele. Depois, quando estamos apenas nós dois, Sr. Guará conta que era o filho mais velho de um cacique chamado Tucuaré, e que, portanto, seria o sucessor natural de seu pai no comando da aldeia. Quando o velho cacique adoece, tudo é feito para que sua saúde seja resta bel ecida, o Pajé faz as pajelanças que conhece, mas o cacique não melhora e morre. Guará prepara-se, então, para assumir a chefia da aldeia, quando seus irmãos questionam esse direito natural, não permitindo que Guará seja cacique, e uma disputa pelo poder se esta bel ece entre eles.
Guará não aceita ter o seu direito natural à chefia da aldeia, questionado pelos irmãos e resolve não entrar em conflito, não guerrear com os irmãos, não tomar o poder à força. Ele me diz que aquele era o seu direito, e que direito não se disputa, que ele não aceita o fato de ter seu direito contestado. Guará, então, retira-se para dentro da mata, magoado com os irmãos. Muitas luas se passam até que, um dia Guará resolve voltar para a aldeia, e o que encontra é um cenário de destruição. Sua aldeia já não existe mais, uma tribo inimiga a invadiu, matando todos os homens e capturando as mulheres e crianças.
Guará é, então, tomado por sentimentos de tristeza e vingança. Sente uma grande dor de ver seu povo dizimado, de não ter estado lá para defendê-los, de ter suas mulheres, inclusive a que mais amava, e filhos, levados por outros guerreiros. A dúvida se esta bel ece em seu espírito, e ele experimenta a sensação de não ter tomado a decisão adequada ao se exilar na mata. Deveria ter ficado. Novamente a mata torna-se seu refúgio. É lá que ele passa muitas luas pensando, remoendo a culpa, e planejando qual seria a melhor maneira de ter seu povo de volta. Pensa nos irmãos, que já estão mortos, na mulher que amava, nos filhos que gerou. O desejo de vingança torna-se, pouco a pouco, muito forte e o guerreiro passa a vigiar a tribo invasora, planejando o ataque.
Um animal de grande porte é morto. Com o osso do fêmur que é pacientemente afiado numa pedra à beira rio, Guará faz uma arma com a qual vai vingar a morte dos homens e resgatar mulheres e curumins.
Noite após noite, Guará, silenciosamente, entra na aldeia e mata, cortando suas cabeças, os homens. O guerreiro não tem pressa, a cada noite executa uma parte de sua vingança, retornando sempre à mata, que agora é seu lar. Finalmente, todos os homens estão mortos.
Guará lavou em sangue a honra e a dignidade da sua aldeia e de seus guerreiros mortos.
Retorna para, então, levar de volta às suas terras, mulheres e curumins, no entanto muito tempo havia se passado e todas elas haviam se unido a outros homens e com eles procriado.
Recusaram-se a voltar, sua vida agora era ali. Guará foi, novamente, tomado por um sentimento de abandono. Tudo o que fez não surtiu o resultado esperado e ele, no desejo de vingar seu povo havia manchado suas mãos e sua alma, com o sangue de seus próprios filhos. A mata novamente o acolheu. O exílio era, agora, não questão de tempo para pensar, mas sim definitivo.
Sem pátria, sem povo, sem a mulher amada, os filhos mortos por suas próprias mãos, tornam o guerreiro um homem atormentado pela culpa. A alma do guerreiro está irremediavelmente manchada de sangue e dor. Vagar pela mata, caçar para comer e purgar a sua culpa, ocupam agora, os dias e horas de Guará.
A intimidade com a floresta faz dele um grande conhecedor de plantas e ervas, muitas delas usadas para curar.
Os índios da outras tribos, não acostumados a ver guerreiros sem aldeia e sem povo e o fato de Guará jamais se deixar ver ou comunicar-se com outras pessoas, fazem dele uma lenda. É agora tratado como ·Espírito da Floresta·, vagando entre as aldeias, sem jamais aproximar-se delas. Guará cura, com seu conhecimento e suas ervas, os índios que são deixados na mata. Quando retornam, curados, todos nas aldeias dizem que os doentes são curados pelo ·Espírito da Floresta·
Mas isso não alivia a dor do guerreiro nascido para ser cacique. Os anos de solidão só faz aumentar dentro dele a mágoa e a culpa, não consegue perdoar seus irmãos nem tão pouco perdoar a si próprio. A vida em reclusão faz dele um homem sem palavras, já não fala mais.
As vidas que salva não consolam, nem repõe a vida dos filhos, que tirou. Não suporta, nem mesmo, ver sua imagem refletida na água dos rios, e para que isso não ocorra, cobre seu corpo de lama, na tentativa de esconder-se de si mesmo.
Dias, noites, anos se passam e o guerreiro envelhece. Seu corpo maltratado pelo abandono já não consegue mais caçar para seu sustento. Deixa-se morrer, só, como viveu. Sua carne, ainda em vida é devorada pelos animais, e Guará torna-se, enfim, verdadeiramente, ·Espírito da Floresta.
Outra missão inicia-se. O espírito guerreiro, de homem acostumado à natureza, deve agora, vir para salvar os que aqui estão. Pergunto a ele se ainda sente a mesma dor. Responde que sim. Quando um filho nos é tirado por outros, a dor é grande, mas passa. Quando a vida de um filho é tirada por seu próprio pai, isso não passa nunca.· ·Cortei minha própria carne, fiz correr meu sangue, matei meus filhos e meu coração está pesado, cheio de angústia e dor·.
Pergunto a ele do que se arrepende. Diz : ·Não deveria ter abandonado meu povo, deveria ter lutado, ser cacique, achei que estava agindo certo por não querer lutar por um direito que era meu, estava errado, abandonei meu povo sem chefia, fui culpado pelo que aconteceu com eles. Meu papel de herdeiro da liderança de meu pai era ocupar a posição que era minha, não me importar com as disputas·. ·Em meu coração há, ainda muito rancor e mágoa·
Quero saber se seu pai foi um cacique bom e justo. Guará diz: · Justo, bom, cacique era bom, mas quando ficou doente, apesar dos esforços do Pajé, a doença o levou·.
Seu pai aprovaria sua atitude? ·Não sei.
Outra coisa poderia ser feita? ·Guará não pensou em outra coisa, irmãos de Guará não aceitaram Guará como cacique·.
Pergunto se, um dia, essa dor vai passar. ·Guará tem que aprender a sorrir, não pode ficar com e coração apertado, o dia que Guará sorrir, ao vem mais aqui·.
Digo a ele que, no dia que isso acontecer ficarei triste pela sua ausência, sentirei saudade, mas estarei feliz por ele. Quero saber se é possível que um dia ele sorria para mim. Ele diz que isso pode demorar muito. Digo que não tenho pressa, tenho tempo. Ele me pergunta o que é o tempo para mim, quanto tempo eu tenho para esperar.
Não sei responder, então o Caboclo quer saber a quanto tempo o homem branco está nessa terra (Brasil)? Respondo que há mais de 500 anos. O Caboclo então me diz:·
Esse é o tempo de Guará, Guará viu o homem branco chegar aqui nessa terra, você tem esse tempo? Sorrio e digo que pode ser que nós tenhamos uma longa jornada juntos, se não for nessa vida, talvez em outra eu o veja sorrir. Sinto necessidade de dizer do amor que sinto por ele. O caboclo faz um gesto de que entende o que digo, mas fica em silêncio, pensando.
Observando o movimento em volta, ele diz: ·Guará não gosta disso·. E faz um gesto apontando as pessoas, e entendo que ele não se sente bem em meio a muita gente.Digo que compreendo o que sente, pois viveu muito tempo em isolamento.
Ele então me explica que vem nessa Casa de duas formas. Às vezes jovem, e então gosta de conversar, de contar sua história, falar de seu povo. Às vezes velho, então não fala, não gosta; não porque não queira, mas quando envelheceu já não tinha voz, já não falava mais, perdeu sua linguagem.
Agora posso entender porque, às vezes, ao camboneá-lo é tão difícil ·arrancar· dele poucas palavras, e as que diz são quase ininteligíveis. Nestas horas, creio que o meu papel de cambone é ainda mais fundamental, pois tenho que estar em perfeita sintonia com a Entidade para ·sentir· o que ela quer dizer, interpretar e passar isso, com fidelidade, para o consulente. Muitas vezes não entendia, achava que estava bravo. Hoje entendo e respeito sua dor e seu silêncio e sei que ele ·depende· de mim, da minha dedicação e atenção, para poder cumprir sua missão nessa Casa.
Quando se levanta, o Caboclo Guará pega o Pau de Chuva e pede que eu ouça o barulho que faz. Pergunta-me o que lembra, e eu digo que parece um guizo de cobra. Então ele explica que, por muito tempo, na mata, tinha a companhia de uma cobra e esse barulho é como se fosse o barulho que ela fazia. Pede que eu não permita que as pessoas mexam no Pau de Chuva, fazendo o seu barulho, a cobra não gosta.
Sr. Guará vai embora, levando a sua dor e deixando para mim uma lição de vida.`por quantas vezes deixamos de lutar pelo que queremos, por achar que é nosso direito, que deveria nos vir mansamente, sem luta. Devemos lutar sempre, até pelas coisas que julgamos já nos pertencerem.
Deixa, também, um grande exemplo de amor à família e que os laços de carne e sangue são indissolúveis. Ensinou-me, nessa noite, a respeitar sempre a dor e o silêncio alheio. Fui simplista demais ao tomar seu silêncio como se fora brabeza. Não podia fazer idéia da dimensão do que lhe afligia. Não devo fazer isso com mais ninguém, nem permitir que façam comigo. As pessoas são muito mais profundas do que, por comodidade, costumamos supor.
O silêncio pode encobrir grande dor. O afastamento, grande dúvida. A falta de riso fácil, que teimamos em classificar como antipatia, pode camuflar decisão de recolhimento. Por que somos, ou queremos ser, tão superficiais? Dar logo um nome, um rótulo para tudo e todos, se nós mesmos não gostamos, nem queremos ser rotulados? A mesma delicadeza que desejo receber, devo dar aos outros. A atenção que necessito, preciso ter para com os que me acompanham.|
Foi essa a lição que levo comigo dessa noite. O desprendimento de Sr. Guará, ao me contar sua vida, expondo sua dor, não deve servir apenas para saciar minha curiosidade, ou para sabermos a sua história; muitas vezes a dor vivida por outros nos serve como alerta. Se conseguirmos, ou tentarmos, não cometer os mesmos erros, sua dor não terá sido inútil.
Por: Sheilla Riekes Prochmann
Fonte: www.paimaneco.org.br
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